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Angelus Novus, quadro de Paul Klee que inspira a reflexão de Walter Benjamin citada. |
Há um quadro de Klee que se
chama Angelus Novus.
Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se
afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da
história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltada para o
passado. Onde nós
vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele
vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para
acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que o anjo não
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para
o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas
diante dele cresce até o céu. É a essa tempestade
que
chamamos progresso.
Walter
Benjamin, Sobre
o conceito de História,
Tese 9.1
Walter Benjamin (1892 – 1940)
foi um filósofo alemão, viveu no início do século XX; judeu, seu
pensamento é bastante original, construído na relação entre a
filosofia (notadamente marxismo, não ortodoxo), a psicanálise,
literatura, História, sociologia, Teologia, etc.; hoje, Walter
Benjamin é lido e apropriado por diversas áreas do conhecimento,
ganhando o reconhecimento acadêmico que nunca obteve em vida.
Eu penso que nós também,
enquanto igreja cristã, podemos nos aproximar de Benjamin e nos
apropriar do pensamento dele, justamente na área que nos é mais
próxima: a Teologia. Embora Benjamin se valha da teologia judaica –
especialmente os estudos cabalísticos de Gershom Scholem – existem
pontos de diálogo com a nossa teologia cristã.
Quando
Benjamin fala em anjo, é preciso ter claro que a figura que ele toma
como mote para esta reflexão não se parece em nada com as imagens
“fofinhas” de anjos, presente no senso comum. Nós sabemos que
anjos (malach, no hebraico) são mensageiros de Deus, espíritos que
servem a Deus e ajudam os salvos (1 Rs 19.5-7, Hb 1.14). Mas, há
também uma dimensão escatológica aqui nesta tese. A ideia de
Benjamin de a História como “uma catástrofe única”. Na
perspectiva do anjo, me lembra de trechos como o capítulo 2 do livro
de Daniel, onde está registrado que o rei Nabucodonosor teve um
sonho no qual “viu uma estátua enorme”, “brilhante”, cuja
“cabeça era de ouro puro, o peito e os braços eram de prata, a
barriga e os quadris eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os
pés eram metade de ferro e metade de barro”; e no sonho o rei viu
que “uma pedra se soltou de uma montanha, sem que ninguém a
tivesse empurrado. A pedra caiu em cima dos pés da estátua e os
despedaçou. Imediatamente, o ferro, o barro, o bronze, a prata e o
ouro viraram pó, como o pó que se vê no verão quando se bate o
trigo para separá-lo da palha. O vento levou tudo embora, sem deixar
nenhum sinal. Mas a pedra cresceu e se tornou uma grande montanha,
que cobriu o mundo inteiro”(Daniel 2.31-35). Adiante é dito que
esta pedra é um “reino que nunca será destruído, nem será
conquistado por outro reino”, e “durará para sempre” (v. 44).
Outro texto escatológico, mais “famoso”, no Apocalipse, nos
informa que este é o Reino de Deus (Ap. 21, 22); Reino que foi
pregado e trazido por Jesus, o Cristo.
Jesus é o único que pode nos
tirar do meio dos escombros, das ruínas, e acordar os mortos com a
salvação, conseguida com a sua morte e ressurreição. Nós não
saímos de lá com vida, por mais que nos esforcemos; só ele pode
nos salvar da catástrofe. Nosso entendimento, refém da natureza
humana, nem sempre percebe esta catástrofe. Podemos ser iludidos por
uma visão de progresso, que não nos deixa ver o amontoado de ruínas
crescer até o céu assim como o brilho do ouro, da prata e do bronze
e a consistência do ferro e do barro ofuscam a fragilidade da
estátua do sonho do rei.
Outro texto bíblico me veio à
memória: “Anuncie que todos os seres humanos são como a erva do
campo e toda a força deles é como uma flor do mato. A erva seca, e
as flores caem quando o sopro do Senhor passa por elas. De fato, o
povo é como a erva. A erva seca, a flor cai, mas a palavra do nosso
Deus dura para sempre”. (Isaías 40.6-8). Este texto me lembra
também destas palavras de Jesus, quando estava olhando para o Templo
de Jerusalém, na semana de sua Paixão: “Vês estes grandes
edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada”
(Marcos 13.2). O homem, com todas as suas construções –
arquitetônicas, filosóficas, ideológicas, políticas, culturais,
etc. - passa, tudo será derribado, destruído, secará e cairá –
mas, a Palavra de Deus dura para sempre. Jesus é a Palavra de Deus
que “se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de
verdade”, a quem recebemos e adoramos como “Filho único do Pai”
(João 1.14).
Mas… Em que medida o pensamento
de Benjamin contribui conosco?
Toda
a obra de Walter Benjamin é marcada pela crítica à modernidade
capitalista, ao domínio do racionalismo técnico e científico que
dominou as áreas do conhecimento e as artes, passando por cima de
uma série de outros saberes, valores e experiências. Este processo
tem sua euforia a partir do século XIX, embora possa ser mapeado
desde antes, com o iluminismo. Seria o cristianismo um destes
saberes, valores e experiências soterrados pelo “progresso” da
“modernidade”? E, quando falo em “cristianismo” aqui, é algo
para além do que culturalmente conhecemos como “cristianismo”:
trata-se do Evangelho puro, simples e verdadeiro: bíblico,
cristocêntrico. O Evangelho que os reformadores “resgataram” do
meio dos escombros do “cristianismo” do seu tempo. Penso que
estamos aqui diante de um desafio semelhante: Será possível salvar
o pensamento cristão do racionalismo ocidental?
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* Texto produzido e lido por Pedro Mülbersted Pereira como devoção da reunião da Diretoria da CELC em 09/12/2015.
1. BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. 8ª ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 2012,
p. 245-246.
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